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Inverdades e Desmentiras, Não há razão, Toda nudez será castigada, A essência está na voz, The Doors, Aforismos.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Sofismo

"seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo", diriam muitos e, com seus imutáveis chavões, enfatizariam que "não há progresso sem mudança" ou que "só a mudança é constante".

pois bem, nada mais fácil de corroborar por nós, seres pragmáticos, incapazes de enxergar um palmo diante do nariz em um nível de abstração abaixo do que podemos ver, tocar, sentir. meu corpo muda, minha forma de pensar muda, minhas vontades, as coisas à minha volta, tudo muda: somos todos essa "metamorfose ambulante".

implícita nessa noção intuitiva está a idéia de uma grande descontinuidade de todas as coisas, é como se o Universo fosse um filme, com um certo número de quadros estáticos por unidade de tempo. é como se o Ser só existisse se pausássemos o filme ou tirássemos uma fotografia: a cada instante existe uma força mutante, a força mais forte do Universo, gerando o próximo quadro que, apesar de bem semelhante com o antecessor, nada guarda do passado além daquilo que permaneceu o mesmo. está subentendido nessa hipótese sobre a mudança que a todo momento existe um processo transformador atuando sobre tudo e então eu pergunto: não seria esse processo, na verdade, agregador?

quando eu era um feto, na época da minha infância ou há um segundo atrás eu, de fato, não era fisicamente o mesmo, não pensava do mesmo jeito e tampouco tinha as mesmas vontades. o que mudou? "eu", a resposta mais simples e preguiçosa possível gera a incrível contradição da falta de unicidade do Ser. mas então, o que mudou? a relação entre as coisas.

eu, você, o monitor para o qual está olhando e o sol somos todos a mesma coisa: Energia. essa Energia agrupa-se em diversos níveis de abstração para formar o que você vê: desde quarks e gluóns, passando por atómos, organismos e essas palavras, aparentemente desconexas, que você acaba de ler. a origem de tudo, o big bang, não é uma transformação das partículas fundamentais, mas sim a mudança de interação entre fragmentos infinitesimais: antes concentrados num conjunto infitamente denso, passaram a espalhar-se com a explosão.

eu não sou o mesmo de outrora porque estou vivendo, sentindo e descobrindo coisas a todo instante e, ao mesmo tempo, fazendo dezenas de milhões de associações entre os meus neurônios. essas associações potencialmente sempre existiram, os neurônios estavam sempre lá, prontos, esperando para serem ligados. a cada instante eu agrego coisas e, assim, amplio o meu leque de possibilidades dentro do que eu sempre fui, mas não sabia.

é exatamente isso que os mesmos muitos afirmam, contraditoriamente com a sua retórica, sem perceber ao falarem "eu sou o que escolhi ser". eles dizem que todas as possibilidades de associações estão abertas e que, dentre aquelas que já existem, nós escolhemos, a todo instante, quais devemos incorporar para construir o eu instantâneo, parte de um dos quadros estáticos do filme do Universo. nessa visão, no entanto, essa metáfora perde o sentido: eu não mudo a cada instante, apenas escolho potenciais maneiras de interagir com o Universo que estão implícitas em mim desde que fui concebido em um embrião. melhor ainda, essas escolhas estão subentendidas desde que os meus pais, os pais de meus pais, os pais de meus pais de meus pais foram concebidos: ela estão subentendidas desde que o Universo foi concebido.

acredita-se que as pessoas são resultado do seu DNA, um ácido desoxirribonucleico, e da sua interação com o meio. eu acredito que as pessoas, as coisas, tudo, são resultado do DNA do Universo, as partículas fundamentais de Energia, e da sua interação com o Meio.

esqueça a idéia de que você tem uma essência, uma personalidade: tudo é parte de um Todo, e tudo que você pensa que é, na verdade, é uma parte ínfima de escolhas dentro do que você está atualmente apto a ser e, ainda, uma parcela rídicula, absolutamente medíocre do que você realmente é. você pode fazer qualquer coisa, pensar de qualquer forma, possuir todas as sensações e, por fim, ignorar todos os níveis de abstrações para ser o que você, no fim das contas, é: Energia.